sábado, 18 de abril de 2009

O corajoso alferes Garcia e o 1 de Junho de 1975

O hospital civil de Carmona (em cima) e alferes Garcia e furriel Viegas, no dia 10 de Outubro
de 1974, momentos antes da saída para mais uma operação militar, no Quitexe (em baixo)

O alferes miliciano Garcia não era homem de olhar para trás, se perigo se previsse, ou sentisse, na hora dos medos. Transmontano, de Pombal de Ansiães (Carrazeda de Ansiães), era exemplo permanente de coragem e determinação. Militar bem preparado, também ele viveu e sentiu as exigências do segundo turno de Operações Especiais (Ranger´s), no CIOE de Lamego - como eu, o Neto e o Monteiro. Era o nosso comandante de pelotão.
Com ele, vivemos as primeiras diferenças entre a paz e serenidade do aquartelamento e os temores que se nos levedavam no peito, sempre que galgávamos os trilhos e picadas semeadas de ameaças - de arma em riste, imaginando e temendo que, no horizonte misterioso e a perder de vista, um qualquer perigo nos amortalhasse.
O alferes Garcia era generoso e valente, nunca um passo se lhe recuou, para fugir de qualquer perigo. A 1 de Junho de 1975, Carmona era um inferno de fogo. A FNLA e o MPLA lutavam quase corpo a corpo, ensaguentando e enlutando a cidade. Obuses, morteiros e granadas rebentavam a todo o instante. As rajadas faziam estranhos coros nos céus e as Forças Armadas Portuguesas tinham a missão de proteger os civis. Missão nada fácil, numa cidade que não tinha a tropa em grande cuidado e respeito.
Ao passar frente ao liceu, nessa alvorada de domingo, a berliet em que seguíamos para o BC12 foi atacada e uma rajada silvou sobre as nossas cabeças. «Filhos da p...», ouviu-se um grito de aflição. Chegámos, por momentos, a pensar que o Cândido Pires tinha sido atingido. Não tinha.
A missão da tropa portuguesa era proteger os civis e garantir a segurança das posições-chave da cidade: abastecimento de água, a electricidade, as entradas e saídas, o aeroporto, o hospital, por exemplo. Calhou-nos o hospital, já para fim dessa tarde de domingo, depois de recolhermos centenas e centenas de civis, alojando-os na parada do BC12. Ao hospital, chegavam dezenas e dezenas de feridos. E alguns mortos. Nenhum «fnla» ou qualquer «mpla» lá poderia entrar, fosse a que pretexto. Muito menos se estivesse armado. As nossas instruções não seriam poupadas.
«Sabes se há feridos, se há mortos dos nossos?!...», perguntei eu ao alferes Garcia, acabado tinha ele de falar, via rádio, com o comando do BC12. Não havia, entre a tropa portuguesa. Nesse momento, sucessivas rajadas faíscaram nos telhados de zinco (?) do hospital. Claramente disparadas de muito próximo de nós. Estávamos a ser atacados?! Rastejou o Garcia, com um sinal para mim, convencionado. Latejávamos, ambos e as duas dezenas dos nossos soldados. Eu a três, quatro metros dele.
«Comanda, Viegas!...», gritou-me ele. E avançou, a rastejar. Atrás de uma pequena árvore de jardim, numa das entradas do hospital, estava um homem do MPLA. Esfacelado de dor, de vísceras aparentemente soltas, rosto molhado de sangue!!! Pegou nele o Garcia, gritando-me, de novo: «Segurança!!!...». Os 30 metros até à entrada do hospital foram corridos em breves segundos! O homem foi salvo!!! As rajadas eram para ele, disparadas de um prédio! Apanhámos os homens, que ficaram presos no BC12, até que outro destino lhe foi dado!
Nesse domingo de quantas emoções, houve correio para mim, quando a noite já ia grávida de ainda mais medos: minha irmã Ana Maria anunciou-me, por aerograma, que ia ser mãe pela segunda vez. Por uns momentos, pensei na ironia da vida: iria nascer a Marta (em Agosto seguinte) e eu, e aquela tanta gente, num cenário de morte, que nos espreitava a cada momento!
- Garcia: António Manuel Garcia, alferes miliciano de Operações Especiais (Ranger). Como já aqui foi dito, era agente da Polícia Judiciária e faleceu em 1977 (ou 78), vítima de um acidente de viação, na estrada entre Viseu e Mangualde.
- Furriel Pires. Cândido Eduardo Lopes Pires, furriel miliciano sapador, natural e ao tempo residente no Montijo. Actualmente, mora em Niza.

7 comentários:

Anónimo disse...

Belíssima homenagem. A isto nós poderemos chamar solidariedade, homenagem e respeito!
Sempe ouvi falar de grandes aventuras da tropa na ultramar e tenho lido belíssimos textos de grandes autores, sobre as epopeias da nossa tropa.
Felicito este autor, que não conheço, pelo briho e sobriedade com que aqui lembra um seu camarada.
Antánio A. Novais

Anónimo disse...

Caro Viegas:
A tua narrativa é belíssima e felicito-te por isso, sempre foste bom nessas coisas. Lembro-me do belo texto que escreveste para um espectáculo em Carmona e dos programas na Rádio Clube do Uíge, velhos tempos.
É emocionante como ao ler-te nos lembramos, como se estivessemos ao vivo, daqueles dias muito difíceis que por lá se passaram, principalmente a malta operacional, como era o teu caso.
Gostava de te contactar, podes dar-me o teu telemóvel?
António Luís

Marta Garcia Tracana disse...

Que o Garcia era boa pessoa, sempre me foi dito desde que me lembro de ser gente. Sou a Marta, não a que nasceu em Agosto, sua sobrinha, mas sim a filha do Garcia. Marta Garcia e desde 2005, Marta Garcia Tracana.Nasci em 10 de Abril de 1978, pelo que o meu pai faleceu em 2 de Novembro de 1979.
Belíssimo texto, e muito obrigada pela homenagem. É muito bom "ouvir" falar do meu pai fora de casa.

paula zuzarte disse...

Caro Celestino Viegas_

Enaltece-o pelo empenho deste evento, bem como pela excelente atitude, em que dá destaque a uma reunião de fantástico elementos que participarem numa causa nobre.
O António Garcia, que para mim é o meu Padrinho, deve ter sido dos seres humanos mais autênticos, amigo, e nobre nas suas atitutudes, sem qualquer atitude elitista, que eu conheci até aos dias de hoje, simplesmente um SENHOR. O António Garcia é ainda hoje um individuo de referência. para mim e para as pessoas que tanto o respeitavam e o admiravam.
Celestino Viegas parabéns pelo "projecto".
Com os cumprimentos.
Paula Zuzarte - Porto

Anónimo disse...

Senhor Viegas
Parabéns por este trabalho
E realmente o alferes Garcia era tudo isso, um homem de coragem e cheio de vida.
Seria alguém que se Deus não o chama-se iria muito longe deste lado.
Será uma pessoa que Pombal nunca esquecerá.
Mais uma vez parabéns por este belissimo trabalho.

Noémia Almeida - Pombal de Anciães

Cavaleiros do Norte disse...

Cara dra. Paula Zuzarte:
Peço o favor de me contactar.
c. viegas@mail.telepac.pt ou celestinojoseviegas@sapo.pt.
Obrigado.
C. Viegas

Anónimo disse...

Meu caro Viegas, já lá vão tantos anos e fizeste-me tremer de emoção, ao ler a tua narrativa; esse dia foi muito difícil para todos nós mas principalmente para vocês, os atiradores, que tiveram de andar por lá metidos nas balas mas felizmente nenhum dos nossos homens foi atingido, foram os dias mais complicados, mas viemos todo sãos e salvos, que foi o que interessou.
Pires