segunda-feira, 28 de junho de 2010

A revolta da Companhia do Liberato - 1

Alferes Garcia (primeiro da esquerda, em pé), furriel Viegas (sexto, da esquerda para a direita, em pé), 1º. cabo Soares (segundo, em baixo, da esquerda para a direita) e furriel Neto (último, em baixo, à esquerda). Clicar na imagem, para a ampliar

O dia, não o recordo. Seria por Outubro de 1974, no Quitexe!!! Numa das raras vezes em que o alferes Garcia foi ao nosso quarto, avisou-nos ele para nos prepararmos: eu e o Neto. 
«Vamos sair!!!...» E ficou meio  especado, de mãos nos quadris, à espera que matássemos a preguiça que nos deleitava o resto de tarde.
Tínhamos chegado poucas horas antes de mais uma escolta, o sol batia a pino e o que mais apetecia era ficar por ali, a sombrear o corpo na  quietude da casa dos furriéis, à espera da hora de jantar.
«Vamos sair!!!...», repetiu o alferes Garcia. Determinado, diria que solene. Seguramente de ar grave, firme.
Não era vulgar, por aquele tempo, que ele saísse connosco em operações, escoltas ou patrulhamentos, por se ocupar no gabinete de operações - onde substituía, ou ia substituir o capitão Falcão. A férias! Por isso, estranhámos. 
«Vamos sair?!...», perguntou o Neto, arengando algumas imprecações de momento.
E eu, de esguelha, a resmungar: «É sempre a mesma m..., pá!!! Mas o que é que se passa agora?».
Já eu apertava o cinturão e aprontava a G3 que repousava ao lado, quando ficámos a saber: a companhia de nativos de Liberato tinha-se revoltado, havia presos, talvez mortos, avançavam para o Comando de Sector, em Carmona, tínhamos de os ir «parar». 
O bravo PELREC rapidamente formou, armado até aos dentes, os 1ºs. cabos com dilagramas, armamento semi-pesado na garupa dos Unimogs, protecção o mais que se podia. Apresentei o grupo ao alferes Garcia, na parada, e fomos em passo formal até onde estava o comandante Almeida e Brito e outros oficiais.
A ordem foi tensa, silábica, letal:  impedir os revoltosos do Liberato de avançar para Carmona. A todo o custo.  Só por cima de nós. Seria por cima dos nosso cadáveres.
Formado ao lado de Garcia, ligeiramente atrás, como mandavam as regras, olhei-lhe de soslaio o rosto tenso. Mas sem uma tremura. Mas firme! Confiante! A mim, deu-me para deixar cair uma breve lágrima - que disfarcei no suor que nos caía em bica, pela cara abaixo.
O Neto, do outro lado, não deixou mexer um nervo.
O pelotão pôs-se em sentido, à ordem do alferes Garcia. Estava ali, garboso e sem um medo, para o que desse e viesse. Eram todos rapazes de coragem! Fez ombro-arma.
Subimos para os unimogs. «Lembras-te de Lamego?... A serra das Meadas?!!...».
Olhou-me o Garcia, despejando-me os olhos com espantosa serenidade. Sem responder, sem uma palavra, sem pestanejar, com a G3 apontada ao céu e as ancas carregadas de granadas, as cartucheiras como uma mulher grávida: cheias de munições!
O Soares, o sempre renitente e reivindicativo 1º. cabo Soares, olhou-nos com um sorriso amarelado de ironia. «É desta vez?!...», perguntou ele, enquanto se acomodava nos bancos corridos do unimog. Ia ele com um dilagrama, seria dos primeiros a disparar, se necessário fosse. O «esta vez...» do Soares seria um combate a sério, o deflagrar de metralha, o silvo das rajadas das metralhadoras, o cheiro da pólvora e a lama do pó vermelho de Angola feita de sangue!
«Vamos, vamos, vamos!!!...», gritou o alferes Garcia, com isso apressando as demoras de subir dos nossos bravos «pelrec´s», enquanto outros já aperravam armas, trocavam as munições para os dilagramas,  aprontavam miras e se engravidavam de dúvidas.Estes momentos podem não ser de medos, mas são de dúvidas, de ansiedade, de constrangimentos invisíveis.
O Neto, de outro unimog, fez-me um sinal de confiança. E era confiança que se sentia. E a coragem sentíamo-la nós a levedar na alma, naquela ordem recebida para a morte. Sentia-se determinação, bravura, generosidade e partilha solidária de um momento que poderia ser véspera de tragédia.

«Não te sentes na serra das Meadas?!!!...», ironizei eu de novo, para o Garcia. Eu tinha saltado para o chão vermelho da avenida do Quitexe e soltei-lhe a pergunta, como que a querer iludir os meus medos. Os nossos medos. Falar da serra das Meadas era recordar o tempo da nossa preparação militar em Lamego, preparação "para a guerra!...".  Aí a tínhamos!
Felizmente, não houve confrontação. Evitou-se uma tragédia.
(continua amanhã)

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